domingo, 1 de setembro de 2013

De pai para filha

Sentia-se cansada, tonta. Tentava apertar o passo para chegar em casa, mas em meio a tantas pessoas apressadas parecia que não saía do lugar. Virando a esquina, uma visão a surpreendeu: aquela bela menina, com seus apenas dois anos de idade, vinha sorridente, a roupa branca e vermelha, o cabelo em duas “maria-chiquinhas”, e suas mãos leves e delicadas seguravam as mãos ligeiramente enrugadas daquele homem. Negro, cabelos grisalhos, poucos cabelos. Um semblante bem humorado, mas de testa levemente franzida. Carregava em seu rosto a paciência e a preocupação, o cansaço e a vontade de mostrar àquela criança uma vida diferente da que ele tivera. Ela então tonteou mais uma vez ao se dar conta de que aquela menina era ela, como conhecia das fotos, alegre, de olhar ingênuo e inseguro. O homem, que parecia ser avô da menina, era seu próprio pai, tal qual está hoje. Custou a entender, tentou olhar nos olhos dele, tão próxima estava... Mas ele não a notou, e ela achava que enlouquecera, ou então estava realmente delirando, precisava chegar logo em casa e descansar. Mas ela não se movia. A menina a olhava sorrindo e lhe despertou uma angustiante sensação de nostalgia. Será que vivera aquele momento docemente displicente? Será que sentira tanto carinho daquele homem, mas já esquecera? Ela buscava seus olhos, mas ele não a viu. Apenas a ternura daquela cena a acalmava, contornando a inquietante constatação de si mesma naquele “quadro”. Chegou em casa atônita. Preparou um chá e se entregou à TV até adormecer. Ao acordar, ainda se perguntava por que ele não a vira, por que era ela a criança, por que a cena se repetia? O que tudo aquilo lhe queria dizer? Um bom dia, e à mesa do café da manhã tudo fez sentido. Encontrava finalmente os olhos de seu pai. Ali, frente a frente, entendia o que aconteceu. Seus olhos lacrimejados sentiam falta da sua menininha, sentiam falta dos tempos idos. Parece que ele sentiu em seu corpo o peso da idade; sentiu em sua alma a dureza da vaidade. Ela compreendeu então que ainda poderia lhe segurar a mão como aquela garotinha; que ainda era possível pedir que lhe mostrasse outro mundo; que aquele homem ainda a amava na sua insegurança, na sua alegria e na sua espontaneidade. Entendeu que aquela doce criança lhe dizia pra recomeçar.

8 comentários:

  1. Nunca é tarde para acertar as contas dos afectos.
    Comovente!

    Beijo :)

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  2. MariaFeamiga

    Recomeçar é, para mim, muito mais difícil do que começar. Quando se quer começar o que quer que seja basta ter vontade de o fazer e seguir em frente.

    Mas, recomeçar é voltar a seguir, mas também complementa o parar. Quem recomeça, pode ser vaidoso; mas a mão de uma criança tira-lhe a soberba e ensina-lhe o caminho do recomeço. Tenho dito.

    Não tenho: gostei do teu blogue, gostei deste texto e dos outros, gostei da paginação. Gostei.

    Oxalá gostes da minha Travessa

    Qjs = queijinhos = beijinhos

    Henrique

    Vou já juntar-te à minha Lista dos Blogues Preferidos

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  3. Os afetos e o poder deles marcam e corporizam-se à medida que caminhamos.

    Beijo

    Laura

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  4. Este texto é muito belo sobre afectos, que nem sempre são fáceis.
    Gostei muito.
    Desejo que esteja bem.
    Bj.
    Irene Alves

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  5. Bom...o acaso me trouxe até aqui, ainda bem.
    Adorei o seu Blogue, os seus textos e da apresentação.
    Voltarei!

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