domingo, 29 de setembro de 2013

Afeto.

Afeto. “Tocar, comover o espírito”. “Disposição da alma, sentimento”. “Aquilo que age sobre um ser”. A despeito dos dicionários consultados, simplesmente é a inevitável condição de existir. Afeto é sentimento, mas também atitude. É construir e desconstruir significados, sempre. Entender o afeto é pensar o sentido da vida. Embora isso possa parecer filosófico demais, é simples como um botão de rosa: nasce, desabrocha, perfuma, murcha, fede, morre. E tantas outras rosas vêm, com outras cores tão bonitas de ser ver quanto àquela. Desde sempre se pensou e se discutiu sobre a dureza e a leveza de existir. Fala-se sobre o amor, e o ódio, sobre o ciúmes, a inveja, sobre o perdão, a compaixão, e tanto mais... Quantas músicas e poesias nós conhecemos que indagam sobre o que é o amor? Ah, tanta gente quebrando a cabeça para definições em vão! O amor é óbvio (ou quase)! O que não é claro é como cada um de nós é afetado por ele. E por todos os demais sentimentos humanos. É muita vida, é muita luta, é muito sonho e muita confusão para vivenciarmos todos os dias essas “definições indefiníveis”. E infindáveis! O que te afeta? Como te afeta? E o que você faz com isso? Ora vem como um rompante natural e instintivo, como o amor de mãe. Ora é racionalizado dentro da emoção, como a decisão de perdoar alguém. Afeto é visceral, é entorpecente, é enlouquecedor. Afeto é riso, é choro, é expressão, é indagação. É incontrolável. E irresistivelmente envolvente. Porque diz quem sou, quem eu quero ser, e quem também não quero. Longe de mim sentir isso! Mas não tem jeito, já veio. Afetou. Afeto é dizer para o mundo quem sou eu, responder à altura pra esse moço que grita o tempo inteiro quem devo ser. E então a gente diz que não está satisfeito com isso. Ou então se cala. Porque afeto às vezes transborda, mas às vezes é vazio. E afetar-se é viver o que está fora e o que está dentro, ao mesmo tempo. Reagimos com atitudes, com emoções contidas ou extravasadas, ou ainda com reações orgânicas. Adoecemos. E amadurecemos. Afeto é a chance de se dar conta de si mesmo. A chance de entender que ninguém está pronto, ninguém está acabado. Ninguém sabe necessariamente o que quer o tempo todo, e não há pecado algum nisso. Pecado é não assumir ou fingir ser o que não é. Como se só as flores me afetassem. Ora, estou é cheia de espinhos! Sei que os sonhos e a realidade são em mim confusos, e admito ter medos e dores, e às vezes querer fugir. Ninguém pode cobrar de nós que sejamos auto suficientes, decididos e felizes em tempo integral. Afetar-se é ser humanamente sincero. Estou descobrindo como vivenciar esses afetos. Não nas minhas relações com os outros, mas comigo mesma, porque o amor ou a raiva que sinto por alguém só afeta a mim (pelo menos em princípio). Olhar para dentro de si é tarefa difícil! Viver, experimentar, sentir, ouvir o que me afeta é descobrir o que me identifica, e brigar com o mundo que insiste em querer ditar o que devo sentir. Afeto é o que carrego na minha alma!

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Perdoar-se.

O sentimento exacerbado de nostalgia às vezes pode ser uma grande culpa carregada com correntes que nos amarram e nos impedem de ir à frente. É necessário que o olhar para o passado seja apenas de consciência pela etapa cumprida, e não de arrependimento. Podemos achar que foi pouco, que foi errado, que poderíamos ter feito diferente. Mas foi assim, e já foi. E cada pedaço faz parte da nossa história, que tem que continuar.
Abrir aquela caixa de imagens não foi fácil para mim naquele dia. Fazia muito tempo que não revirara sentimentos tão intensamente. Nem mesmo me dei conta de que todas elas estavam tão vivas em minha mente e em minha alma, acessadas a qualquer tempo. Bastou um pequeno pedaço de papel para tudo vir à tona. Segurei a mão de todas elas, que me olhavam com um misto de saudade e admiração. Eu não entendia. Talvez elas quisessem me dizer alguma coisa, mas eu apenas chorava. Doía. Todas aquelas meninas e jovens carregavam consigo uma flor, uma cor, um sorriso. Mesmo a mais cinza me mostrava em suas mãos pétalas ainda bem perfumadas. Olhar nos olhos de cada uma delas foi confuso, dolorido, mas ao mesmo tempo instigante. Era como se eu lhes devesse algo, como se eu lhes houvesse outrora furtado sonhos. A sensação da culpa e da dívida me corroía, e nessa hora parei de lhes encarar. Chorei mais uma vez. Foram necessárias algumas horas em silêncio, nos olhando, para que eu entendesse que aquelas cores ainda estavam vivas, que aquelas flores eram para mim, para que eu aceitasse aqueles sorrisos. Era isso que queriam me dizer, que eu precisava desse entendimento para continuar. Talvez eu confunda a saudade com a culpa. Talvez eu queira voltar o tempo e corrigir os erros. Talvez eu queira dar a elas uma nova chance. Tocar aquelas imagens tão vivas é difícil, acessar cada lembrança é dolorido. Pode ser que a dor demore a passar, pode ser que a saudade ainda aperte. Pode ser que ainda seja difícil abrir aquela caixa. Pode ser que eu chore. Mas elas levaram embora a culpa, e sem ela comecei a entender que era eu quem estava ganhando uma nova chance. Sou eu agora que devo escolher as minhas cores, sou eu agora que carregarei a minha flor. Talvez eu plante um girassol.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Mosaico de Cacos

Não quero sentar e ansiar pela mudança, pelo novo. Parece óbvio, parece cômodo. Ele vem, é fato, e lidar com ele talvez seja mais fácil, mais leve. Deixo para trás o discurso da obsolescência. Para o velho só me exijo a paciência. E um pouco de ousadia, quem sabe... Quero cutucar a cada dia a ferida que a mim cabe. Revirar a carcaça, desparafusar cada peça e me remontar. Acho mais honesto e leal assim me encarar. Frente a frente com tudo aquilo que vivi e construí. Cada sentimento que diz quem sou ou quero ser. E até o que eu ainda não descobri ou decidi... Não é que eu ignore a mudança necessária. Mas tento ver em cada caco o seu brilho. Posso me despedaçar e ainda inventar um mosaico com meus velhos cacos.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Colecionadores de pedras.

Havia um louco que colecionava vários tipos de pedras. De algumas, ele não desgrudava, e às vezes escondia para que ninguém as visse, mas em certos momentos elas lhe incomodavam em seus bolsos. Outras, ele atirava numa correnteza que as levava para bem longe, e sentia então o alívio e a leveza de um dever cumprido. Algumas pedras ele entregava como presente, grandes, polidas, como se fossem preciosas, ainda que não lhe dessem o menor valor, ainda que rissem dele. Restaram-lhe as menores, tão opacas, rachadas, corroídas pelo tempo. Estas ele atirava, uma por uma, nas pessoas que por ali passavam, nas pessoas que ora lhe zombavam, ora lhe ofereciam ajuda, ora lhe interrogavam, ora lhe diziam sermões. Apesar de tão pequenas, essas doíam. Mas o pior é que voltavam e ele se via novamente com sacos e sacos de pedra. Acho que ele mesmo as catava do chão.
Esse louco sou eu. Ou pode ser você. Quantas ideias, pensamentos, vontades, palavras não ditas, gestos descumpridos, afetos não vividos, mágoas descabidas nós colecionamos? Juntam-se como sacos de pedras que nos pesam as costas. Algumas podem ser escondidas, mas cedo ou tarde vão nos incomodar, outras podem ser cuidadosamente polidas e entregues, antes que seja tarde. Umas devem ser atiradas à correnteza para que a vida siga seu curso. Mas aquelas que atiramos nos outros, essas podem voltar para nós ainda mais numerosas. O melhor é esvaziarmos esses sacos o quanto antes, e não colecionar as pedras que não valem.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Os outros e ela.

Era fim de tarde quando ela passava por aquelas esquinas. Muitos corpos cansados, envergados, tentando carregar suas almas num sorriso. Ela sentiu pena. Eles sorriam sem parecer sentir. Ficou pensando na angústia deles, e mal se lembrava da própria. Em cada rosto idealizava uma vida. E sempre seu coração mergulhado em piedade. Achava que eles não sabiam o que era a felicidade. Queria tocar em cada corpo, num abraço. E com cada alma estabelecer um laço. Mas não foi capaz de se aproximar. Sentiu pena. Mais algumas horas e pensava em si mesma. Em casa, sozinha, dispensou a distração e olhou para si. Lembrava-se de todos os outros e os encontrou no espelho. Sentia seus passos, seus corpos, seus sorrisos, suas almas. SENTIA. Mas ela mesma, quem diria, não conseguia sorrir. Sentiu pena.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Melancolia.

Melancolia. Às vezes é boa, às vezes necessária. Afeta. Remexe lá dentro. Faz pensar. Porque nem sempre os sentimentos que vêm são belos. Melhor assim. Sinto-me mais humana. Sem cascas, sem máscaras. Ajuda a me enxergar.
Edvard Munch. Melancolia.

domingo, 1 de setembro de 2013

De pai para filha

Sentia-se cansada, tonta. Tentava apertar o passo para chegar em casa, mas em meio a tantas pessoas apressadas parecia que não saía do lugar. Virando a esquina, uma visão a surpreendeu: aquela bela menina, com seus apenas dois anos de idade, vinha sorridente, a roupa branca e vermelha, o cabelo em duas “maria-chiquinhas”, e suas mãos leves e delicadas seguravam as mãos ligeiramente enrugadas daquele homem. Negro, cabelos grisalhos, poucos cabelos. Um semblante bem humorado, mas de testa levemente franzida. Carregava em seu rosto a paciência e a preocupação, o cansaço e a vontade de mostrar àquela criança uma vida diferente da que ele tivera. Ela então tonteou mais uma vez ao se dar conta de que aquela menina era ela, como conhecia das fotos, alegre, de olhar ingênuo e inseguro. O homem, que parecia ser avô da menina, era seu próprio pai, tal qual está hoje. Custou a entender, tentou olhar nos olhos dele, tão próxima estava... Mas ele não a notou, e ela achava que enlouquecera, ou então estava realmente delirando, precisava chegar logo em casa e descansar. Mas ela não se movia. A menina a olhava sorrindo e lhe despertou uma angustiante sensação de nostalgia. Será que vivera aquele momento docemente displicente? Será que sentira tanto carinho daquele homem, mas já esquecera? Ela buscava seus olhos, mas ele não a viu. Apenas a ternura daquela cena a acalmava, contornando a inquietante constatação de si mesma naquele “quadro”. Chegou em casa atônita. Preparou um chá e se entregou à TV até adormecer. Ao acordar, ainda se perguntava por que ele não a vira, por que era ela a criança, por que a cena se repetia? O que tudo aquilo lhe queria dizer? Um bom dia, e à mesa do café da manhã tudo fez sentido. Encontrava finalmente os olhos de seu pai. Ali, frente a frente, entendia o que aconteceu. Seus olhos lacrimejados sentiam falta da sua menininha, sentiam falta dos tempos idos. Parece que ele sentiu em seu corpo o peso da idade; sentiu em sua alma a dureza da vaidade. Ela compreendeu então que ainda poderia lhe segurar a mão como aquela garotinha; que ainda era possível pedir que lhe mostrasse outro mundo; que aquele homem ainda a amava na sua insegurança, na sua alegria e na sua espontaneidade. Entendeu que aquela doce criança lhe dizia pra recomeçar.